terça-feira, 18 de outubro de 2011

O tempero da vida

            O que tempera tua vida?
O que dá gosto? O que dá aroma?
O que te dá a vontade de comer até o último pedacinho, lamber os dedos, raspar a panela, e ainda ficar com gosto de quero mais?
A pimenta da vida é o bom humor. Pimenta malagueta, o ardido das piadas de ocasião. Pimenta de cheiro, saber rir de si mesmo. Pimenta do reino, fazer troça dos problemas.
A hortelã, tão refrescante, são os momentos de lazer e descanso, um refresco pra cabeça.
O orégano é a amizade, tem gosto de pizza, de gente reunida, de bate papo.
Aquele cheiro do alecrim é um cheiro de limpeza, de leveza, quase transcendental. O alecrim da vida é a meditação, a introspecção, o momento de olhar para dentro.
A manjerona e o manjericão lembram a família reunida para a macarronada de domingo.
A canela, tempero dos doces por excelência, combina com o doce do amor, da paixão.
A baunilha da vida são os sonhos, que devem ser sempre tão suaves quanto ela.
O sal é o tempero do pé no chão, do trabalho, o contato estreito com a realidade, necessário, mas nocivo quando em excesso. O sal te diz, hei, pega leve aí, vai com calma.
A vida é um prato para ser saboreado sem moderação. A vida não merece dietas restritivas. A vida deve ser devorada com todas as suas calorias.
O tempero da vida é a gente que bota, na medida que quiser, conforme o gosto de cada um.



sábado, 27 de agosto de 2011

A menina que não queria sonhar

Minha filha, desde bem novinha, tem pesadelos com uma certa frequência. Não é raro o sono agitado, o despertar entre lágrimas, o medo de dormir.
Sempre tive com os meus sonhos uma relação muito especial. Meus sonhos falam comigo. Eles me alertam sobre meu estado de espírito, sobre as minhas inquietações, sobre o que está incomodando, me atrapalhando, e me põem em contato com os meus queridos que já partiram.

Não sei desde quando tenho esta percepção a respeito dos meus sonhos, as primeiras lembranças claras são da adolescência, mas sempre que me encontro em uma situação aflitiva, com problemas demais a me atormentar, um sonho sob medida chega e me mostra o que fazer.
Nem sempre é muito claro, às vezes é muito assustador, às vezes tem mais cara de pesadelo mesmo. Me acordo sobressaltada, apavorada, mas lembrando passo a passo o sonho que tive e, intuitivamente, descubro o que ele tem para me revelar.
Os sonhos ordinários, eu não chego nem a lembrar. Tenho fragmentos de imagens, tudo bem desconexo, sem nenhum sentido perceptível. Mas os sonhos que me falam, destes sim, eu lembro completamente e percebo sem nenhuma dúvida que podem me orientar de alguma forma.
Mas para chegar a reconhecer que meus sonhos poderiam ser úteis tive que me abrir à experiência de olhá-los sem medo, de pensar a respeito deles, de inseri-los no contexto das minhas vivências. E, pouco a pouco, fui aprendendo a me conhecer melhor, inclusive esta porção minha chamada inconsciente.
Há algum tempo, minha irmã foi fazer minha filha dormir e cometeu o pecado de dizer que estava na hora de ir para “o país dos sonhos”.
O país dos sonhos passou a ser o inferno na terra. “Eu não quero ir para o país dos sonhos” é a frase de todas as noites, na hora de dormir.
Com apenas quatro anos, ela ainda não é capaz de contar os sonhos que tem. Apenas me diz, cheia de lágrimas, “eu procurei você mamãe, mas você não veio”, numa clara alusão à minha ausência no seu último pesadelo.
É angustiante, para ela e para mim. Não sei o que fazer, não sei se há algo a fazer. Procuro explicar que não há país dos sonhos, que o sonho acontece dentro da cabeça, mas isto a conforta apenas para adormecer. No momento em que está sonhando, quando não se tem controle sobre nada, minhas explicações são vazias e fúteis.
Espero que, com o passar do tempo, minha fllha possa adquirir uma consciência diferente sobre seus sonhos, compreendendo-os e utilizando-os em seu favor. E principalmente, que possa não temê-los a ponto de não querer sonhar.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Toninho



Meu irmão, Antônio Augusto, está se formando.

Eu tinha quatro anos e lembro perfeitamente: eu queria uma irmãzinha! Quando vi aquele guri, a decepção foi instantânea. Aí ganhei um canarinho, para me compensar pela irmã que não veio. Canarinho que ele tratou de soltar quando estava com um aninho. É. Começamos com o pé esquerdo.
A gente se estranhou um monte de vezes. Eu, a mais velha dos irmãos, tinha que cuidar para que as pestes não aprontassem nada. Era impossível! Coisas quebradas, bagunça total, documentos que sumiam, eu era culpada por tudo. E não adiantava dizer “não fui eu”. A resposta era invariavelmente: “devias ter cuidado para que teus irmãos não fizessem nada errado”. Não tinha escapatória!
Enquanto o tamanho permitiu, eu mantive o guri sob controle. Mas ficou inviável depois que ele chegou a mais de 1,90m de altura!
Brigávamos por toda e qualquer coisa: o que assistir na televisão, os brinquedos que não eram guardados, os livros riscados...
Mas nem só de brigas nós vivemos!
Uma das primeiras lembranças que tenho dele, além do bebezinho tão pequeno deitado num travesseirinho de cetim azul com pequenas flores amarelas bordadas, somos nós dois embaixo do poncho da mãe, atolados na neve na vila dos Pelúcios, caminho de São Francisco de Paula para Bom Jesus, onde morávamos e onde ele nasceu. O fusca do pai não tinha ar quente. Nevou e se formou lama na estradinha de chão batido. Ficamos atolados. Enquanto o pai tentava conseguir alguma ajuda na vila, minha mãe ficou conosco no carro gelado. Para nos aquecer, colocou-nos embaixo do seu poncho de lã, como uma galinha com os pintos embaixo das asas.
Lembro dos dois mil e quinhentos acidentes com ferimentos que ele sofreu! Caiu do escorregador com uma vassoura na mão. A vassoura fazia as vezes de uma espada. Ao cair, o cabo da vassoura partiu exatamente sobre a boca do meu irmão. Aquela várias farpas da madeira rasgaram a carne profundamente.
Brincando de pega-pega, caiu de boca no chão e quebrou um dente.
Sentado sobre um muro, com as pernas enlaçadas na grade, caiu para a frente e bateu com a testa. Quinze pontos.
Brigou com um colega e levou uma pedrada na testa, no mesmo lugar dos pontos anteriores. Mais três pontos.
Arteiro era ele!
Quando tinha dois anos, morávamos em Cachoeira do Sul, na rua da estação rodoviária. Um dia, achou o portão aberto e sumiu. Foi aquele desespero, todo mundo procurando. Meu pai o encontrou na rodoviária, passeando entre os ônibus. Aliás, portão aberto era algo que ele adorava. Ainda com dois anos, recém havíamos nos mudado para Canoas, novamente achou o portão aberto e se enfiou embaixo de um carro que estava estacionado na frente de casa. Dois homens conversavam e um deles entrou no carro e deu a partida. O outro avisou: “espera, não arranca que acho que tem um gato aí embaixo” e se abaixou para olhar. Achou o Toninho!
E a adolescência? Primeiro, banho não era com ele! Um horror! Depois, um desfile de amigos com apelido de bicho: Porco, Jegue...
E o trago? Tomava todas! Uma noite, na praia, chegou torto! Ao invés de bater na porta, bateu na parede do vizinho! O pai queria o fígado dele. Pensando bem, acho que não queria. Aquele fígado devia estar condenado!
Até que um dia, um susto. Bebeu demais, passou muito mal por vários dias. Foi ao médico e foi diagnosticada diabetes tipo 2 aos 26 anos de idade. Nunca mais bebeu. Nem uma gota. Trocou tudo por água tônica.
Encontrou seu caminho num grupo espiritualista sincrético, no qual exercita seus dons e ajuda as pessoas a sua volta. E no grupo encontrou sua cara-metade, o pedaço que faltava para ser feliz. Com a Andréia, a transformação se consolidou: o eterno “porra-loca” achou serenidade e foco, estabilizou-se e, agora, se forma em Gestão Financeira.
Fico muito feliz com a trajetória do Toninho (1,94m e será sempre o Toninho!!!). Fico feliz que tenha se encontrado nesta vida, que tenha descoberto sua razão de ser no mundo, que se sinta realizado. Posso dizer, do fundo do coração, que tenho muito orgulho do meu irmão! E desejar a ele sucesso e muita felicidade!

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Clarice

Dia 04 de agosto minha irmã faz aniversário.

Ela é uma criança grande. Está chegando aos 30, mas bem poderiam ser 10. Um espírito jovem, que não perdeu a inocência infantil, que gosta de brincar e encontra alegria e encanto em coisas simples.

Encarna diversas personagens ao longo do dia: a Cacá, a Didi, a iniciada, a técnica de enfermagem, a artesã, a cozinheira, a pedagoga, a esposa, a filha, a irmã, num belo e colorido mosaico.
Por vezes, se perde pelos caminhos, porque ela não anda: saltita, rodopia, dá cambalhotas, moleca travessa. Assim é fácil não avistar as placas e os sinais de alerta.
Os pés que ela ainda não firmou totalmente no chão seguem substituídos por um imenso par de asas. Sua mente flutua, plana sobre os mares e as montanhas.
Tão grande quanto as asas é seu coração, um coração que acolhe, abraça, acalenta, sossega, mesmo sendo sempre desassossegado.
Seu coração é sua força, mas ela ainda não sabe. Seu coração é a âncora capaz de dar sustentação a sua mente alada. Isto ela ainda precisa descobrir. Precisa ver o que todo mundo vê: seu coração é sua luz guia. Quando a mente alça vôos incertos, o coração dá o rumo.
Hoje está de aniversário. Mais velha? Só o corpinho! O espírito segue uma menininha! Aquela mesma que voava de bicicleta pelas ruas, que jogava bolita com os meninos, que comandava a criançada à sua volta. Aquela mesma menininha que eu vi pela primeira vez dormindo dentro de uma mala (como sempre, ligeira demais, não deu nem tempo de comprarem seu berço).
Felicidades, irmã!

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Decorando a vida

Preparar decoração para festas é uma espécie de terapia

Quando minha filha estava para fazer um ano, passei por um momento muito difícil. Trabalhava em uma área complexa da farmácia hospitalar: a farmácia do bloco cirúrgico. Desde que era estudante de Farmácia, tinha uma grande vontade de trabalhar em um hospital. A farmácia hospitalar é uma área interessantíssima, que envolve atividades bastante diversas e pouco rotineiras, o que combina de uma maneira muito especial com meu jeito avesso a fazer sempre as mesmas coisas. Mas uma farmácia de bloco cirúrgico ultrapassa até mesmo as minhas medidas do que seria uma saudável ausência de rotina. Tudo é muito rápido, tudo é para ontem, os pacientes estão abertos, na sala cirúrgica, e o material tem que estar disponível, não importa se está em falta, se não há dinheiro para comprar, se o fornecedor não entregou em tempo, seja como for, tem que ter. É quase humanamente impossível dar conta disto sem surtar. E mais ainda quando se faz o meio de campo entre a área técnica (cirurgiões, anestesistas, enfermeiros) e a área burocrática (compradores, almoxarifes, gerentes) e este é o grande limbo em que o farmacêutico hospitalar muitas vezes se encontra (e mais ainda o farmacêutico do bloco cirúrgico). O farmacêutico hospitalar é, muitas vezes, um tradutor, aquele que explica à área administrativa o que a área técnica necessita, e traduz de volta, para a área técnica, porque a área administrativa não pode providenciar. Este foi meu inferno astral durante um longo período (foram alguns meses, mas se tivesse sido uma semana, já teria sido um longo período).
Então, comecei a entrar em parafuso, sair da casinha, pirar na batatinha, literalmente entrei em um processo de depressão profunda e da qual só saí com muita força de vontade, muita consciência de mim mesma e uma terapia até então inesperada: preparar a festa de um ano da minha filha.
Quando consultei minha psiquiatra, ela me receitou um antidepressivo e me deu dez dias de atestado. Os primeiros três dias usando o medicamento foram terríveis. Sentia-me tonta, cansada, com sono o tempo todo. Mas principalmente não conseguia me desligar do trabalho. Passava olhando e respondendo e-mails, sem o menor respeito com o tempo que eu necessitava para recuperar minhas forças.
No quarto dia, quando comecei a me sentir mais adaptada ao remédio, combinei com minha irmã que iríamos preparar a festa.
Começamos definindo o tema: Backyardigans (ou, na linguagem da pequena, “Cacáqui”!), que ela curtia desde bem bebê, quando começou a prestar atenção ao que via na TV.
Depois, montar o cenário: centenas de flores coloridas, duas árvores enormes, carregadas de frutas, arranjos de mesa com flores e insetos de EVA, e uma casa, que adaptei a partir de um baú em forma de casinha. Muita cor, muito brilho, e o ânimo voltando no ritmo das tesouradas. Cada passada de cola para juntar cálice e corola, juntava também alguns pedaços meus que ficaram espalhados pelo caminho. Cada arranjo construído era uma reconstrução interna, mental.
A festa foi um sucesso! Não só pela decoração, é claro, mas principalmente por haver reunido muitos amigos e familiares, pelo bom clima, pelas comidas que estavam uma delícia e pela aniversariante, que estava um arraso!
O retorno ao trabalho foi tranquilo e consegui superar esta fase tão delicada. É claro que o tratamento para a depressão é muito longo e não de apenas alguns dias, mas foi inegável o efeito benéfico produzido pelo envolvimento com esta festa.
Daí em diante, tenho me envolvido com frequência na decoração de festas. Não por dinheiro, mas como um hobby, ou como uma terapia ocasional, para aliviar as tensões do dia a dia. Foram mais alguns aniversários infantis, de lá para cá e, agora, estou preparando a decoração para a formatura do meu irmão. É um pouco diferente, é adulto, é homem, os tons precisam ser mais sóbrios, menos coloridos, mas não é menos interessante de se fazer. É preciso um pouco mais de requinte, um certo refinamento, que a festa infantil não exige. Me ajuda a ver, em mim, um lado que não costuma vir à tona.
Lidar com esta arte efêmera, que se acaba em poucas horas, que só é vista por quem foi à festa, tem tornado a vida mais leve em momentos que poderiam ser simplesmente angustiantes. Ajuda a compreender que, como em uma festa, tudo passa, mesmo o que é belo, mesmo o que nos envolve por tanto tempo, mesmo aquilo a que dedicamos tanta atenção e amor. Decorar festas me ajuda a exercitar o desapego, dando a certeza de que tudo tem fim e que isto não é, necessariamente, mau.  Decorar a vida, transformar a futilidade em algo pleno de significados, esta é minha terapia.

domingo, 10 de julho de 2011

A Disneylândia é aqui... na sala

Quando a criatividade substitui o dinheiro e os brinquedos mais caros.

Como acontece muitas vezes, eu estava sentada no computador da sala da casa da minha mãe, jogando paciência spider, e minha filha brincando no sofá, com seus brinquedos.
Vai tirando de dentro da estante um monte de bonecos: bonecas de pano (eu adoro e acho que ela também), a Minimim (uma bonequinha que é a cara da minha filha, por isso o nome), uma linda Minnie de vestido rosa com bolinhas brancas, o Leitão (aquele, do ursinho Puff, mas que, por ser todo cor de rosa, minha guria só chama de “Leitona”), uma Branca de Neve de pano, que eu comprei num artesanato, uma boneca “Meu Bebê” antiga, que era da minha avó (isso mesmo, da minha avó, e ela comprou depois de já ser avó!) e acho que haviam algumas outras, que nem cheguei a ver.
A conversa estava animadíssima entre “as gurias”! Um troca-troca de vestidos, de blusas, então comecei a prestar atenção no “evento”. Estava acontecendo uma eleição. Aparentemente estavam todas em uma sala de aula disputando o título de mais bela princesa (que também seria a ajudante da professora).
Princesa? Sim! Cada boneca era uma princesa da Disney! Uma bonequinha de pano com cabelos pretos era a Pocahontas, outra, de cabelo lilás, era a Bela Adormecida, tinha uma loirinha de chapéu que era a Cinderela. A Branca de Neve e a Minnie eram elas mesmas. Aquela arrumação toda era para concorrerem ao título e, olha só que surpresa, a eleita mais bela princesa foi... a “Leitona” (também no papel dela mesma!).
Em seguida, a “Leitona” teve que assumir o posto de ajudante da professora. E esta, vez por outra, esquecia quem havia sido escolhida para o cargo e pedia ajuda para outra aluna. Mas logo percebia o engano e pedia desculpas, ao que a aluna respondia “Não te m problema, eu ajudo!”.
Minha filha tem alguns brinquedos relativamente caros, mas são poucos, dentro de um universo de quinquilharias, muitos brinquedos muito baratos e uma infinidade de itens artesanais, que são os meus favoritos, pela arte que representam, pela originalidade, por remeter a um certo aconchego de antigamente e porque costumam ter um custo bastante acessível.
A brincadeira foi tão animada, tão divertida, fiquei me deliciando com o encanto do momento.
Minha filha ficou entretida durante horas nessa função e eu fiquei muito feliz com o que estava presenciando: a criatividade e a imaginação num sinergismo mágico em plena sala de casa.
Não é preciso muito dinheiro, nem brinquedos mega-caros!
Espero que, com o passar do tempo, ela possa preservar esta capacidade de improvisar, de inventar, de ser verdadeiramente feliz com aquilo que tem.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Pitando

Hoje eu vi uma coisa bem nojenta!

Que o cigarro é extremamente difícil de deixar, todo mundo sabe. A dependência causada pela nicotina é muito complicada de combater e parar de fumar exige sacrifícios e disciplina. Mas às vezes eu presencio algumas cenas proporcionadas pelo fumo que chegam a ser inacreditáveis. Trabalhando num hospital, estas imagens são verdadeiramente bizarras!
Tempo atrás, vi uma jovem, melhor dizendo, uma menina, sentada na escada da farmácia que fica em frente ao hospital. Sobre suas pernas, um bebezinho que, pelo tamanho, era recém-nascido. O nenê estava solto sobre as pernas da garota, ela não o estava segurando. Segurava, sim, o cigarro, que fumava sem nenhum constrangimento diante daquela pobre e indefesa vítima que tinha no colo. Aliás, mães fumando enquanto levam os filhos pela mão para a consulta por causa da asma, são muito mais comuns do que eu gostaria de ver.
Outro dia, vi um homem de meia idade com um nódulo imenso (devia ter o tamanho de uma laranja) no pescoço, com uma lesão ulcerada neste nódulo, e o pito na boca. Ao seu lado, uma menina de seus nove, dez anos.
No pátio do hospital, numa área em que era tolerado fumar (agora esta área foi extinta, como manda a boa coerência de uma instituição que pretende cuidar da saúde), um homem fumava pela traqueostomia! É claro que tinha ao lado um jovem acompanhante para admirar a cena.
Me pergunto, por que esta predileção em ter a platéia infantil para esse tipo de absurdo?
Hoje, enquanto esperava meu ônibus na parada em frente ao hospital, o extremo da nojeira: uma mulher jovem, razoavelmente bem vestida, pobre, provavelmente, mas com alguma condição financeira, o que faz pensar que tenha algum acesso à formação ou, minimamente, à informação. Estava acompanhada da mãe e da filha, uma menina com não mais que quatro anos, ainda chupando o bico. Ambas também estavam bem apresentadas, confirmando a hipótese de que não se tratam de miseráveis. Pois a tal mulher estava fumando. Lá pelas tantas, ela deixou cair no chão o cigarro, que estava pela metade. Conversando com sua mãe, simplesmente abaixou-se, juntou o cigarro e o colocou novamente na boca. Não deu nem uma assopradinha, nem uma limpadinha, nada, botou na boca e seguiu fumando e com a conversa que estava bem animada.
Se a pequena que estava com ela tivesse deixado cair a chupeta e a juntasse e colocasse diretamente na boca, como o exemplo materno bem ensinou, o que teria acontecido?
a)      A criança levaria uma bronca da mãe?
b)      A criança levaria um safanão da mãe?
c)      A mãe explicaria gentilmente “faça o que a mamãe diz, mas não faça o que a mamãe faz”?
d)      Azar o da criança, a mãe nem notaria, aliás nem a avó (parece que esta também não percebeu que a filha juntou o cigarro do chão e botou na boca)?
Uma parada na frente de um hospital: por ali circulam os sapatos de um monte de gente que anda pelos corredores, que pisa em respingos de escarro, de vômito, de sangue, e depois leva tudo isso para o ponto de ônibus. Pior, por se tratar dos arredores de um hospital, frequentemente se vê, nesta parada, marcas de sangue, escarro ou vômito no chão.
Mas, francamente, não sei se eu senti mais nojo do cigarro sujo ou do exemplo mal colocado. Afinal, o que não mata, engorda, e o que é do gosto regala a vida. Mas, e estas crianças destas tristes cenas? Que imagens guardarão consigo?

sábado, 2 de julho de 2011

Pé no freio

Mais um acidente de trânsito... Mais uma vez ilesa... Está na hora de repensar meu jeito de dirigir.

No ano de 2003 eu morava em Tubarão, Santa Catarina, cidade às margens da BR101, naquela época ainda não duplicada e altamente mortífera. Morei por dois anos neste lugar e com uma frequência mínima de duas vezes por mês, pegava a estrada para Canoas, cidade gaúcha da minha família. O trânsito na 101 era infernal. Ultrapassagens perigosas, imprudência, via tudo isso constantemente. Por mais de uma vez fui obrigada a sair da pista e ir para o acostamento para evitar alguma tragédia. Mas sobrevivi a dois anos nesta estrada sem ter sofrido nenhum acidente. Talvez pela tensão gerada por ela, por saber dos tantos riscos que ela representava, mantinha-me mais alerta, mais atenta, e era mais prudente do que de costume.
No dia 24 de maio daquele ano, estavam me visitando minha mãe, minha irmã e um amigo, que hoje é meu marido. Resolvemos dar um passeio no Farol de Santa Marta. O dia estava muito frio, mas o Farol é sempre lindo. Lá fomos. Na volta, final de tarde, vinha em alta velocidade na estradinha de chão batido. Num dado momento, olhei no retrovisor e, ao olhar novamente para a frente, estava chegando numa pontezinha de madeira, sem guarda, que ficava na saída de uma curva. Era a ponte do Rio Seco (que é seco apenas no nome), no distrito da Madre. Mal posicionada, a curva era para a esquerda e a ponte apontava para direita. Quando a vi, não houve tempo para nada. Cheguei a frear, mas o carro derrapou na areia grossa e desabou de cima da ponte para dentro do rio. Só tivemos tempo de soltar o cinto de segurança. Minha irmã foi a primeira a saltar do carro, quando ainda estava em queda. Boa nadadora, chegou logo à margem. Meu amigo, sentado no banco do carona, conseguiu abrir sua porta e posicionar-se de forma a ajudar minha mãe a sair. Quando o carro tocou o rio, ela teve a sensação de que o perigo terminara, e ficou parada, sem outra reação. Ele a fez sair e nadar até a margem. Até hoje rimos, porque ela chegou à margem sem molhar os cabelos e com a bolsa pendurada no ombro! E eu? Eu fui a última a sair. Como o carro caiu com o motor para o fundo do rio e levemente inclinado para a esquerda, a pressão da água impedia que eu abrisse a porta. Na pressa, não lembrei de olhar para a porta do carona, que já estava aberta. Abri um pouco a minha janela, e por ela passei. Depois do carro ser içado, vi o tamanho da abertura, e é quase inacreditável que eu tenha conseguido passar por ela. Deve ser o tal instinto de sobrevivência!
Molhados, gelados, aguardamos o socorro, que foi chamado por pessoas que passavam por ali. Uma família muito pobre que morava nas margens do Rio Seco nos emprestou casacos, para aliviar aquele frio todo. Uma senhora que nos ajudou, chamando bombeiros e guincho, perguntou-nos se estávamos todos bem, se não tinha ficado ninguém no carro e, surpreendentemente nos disse “Meu marido morreu assim”. E depois disso sumiu no horizonte. Não a vimos mais, nem para agradecermos toda sua ajuda.
O Palio azul marinho, que minha mãe ganhou da minha avó, novinho, não tinha 3000 km rodados, teve perda total.
Durante meses, ao fechar os olhos para dormir, via toda aquela água batendo no vidro. Foi difícil superar o trauma. Quando assisti ao filme O Mistério da Libélula, que tem uma cena parecida, cheguei a ter uma crise nervosa. Quase desisti de dirigir, mas resolvi seguir em frente ao invés de me deixar abater por este acontecimento.
Este foi um dos mais graves acidentes que eu sofri. Quando pequena, meu avô Leonello estacionou na beira de um barranco e o carro despencou, caindo dentro de um valão. Estávamos em cinco no veículo, eu tinha apenas 4 anos. Noutra feita, fui tirar o carro de um estacionamento e simplesmente o atravessei por cima de uma daquelas malas de concreto. Um negócio inexplicável! Eu vi a tal mala, eu sabia que ela estava ali, mas uma total falta de senso me fez virar a direção e sair por cima dela! Também atropelei um ciclista, cuja bicicleta estava sem freios e que atravessou o sinal vermelho. Por sorte, eu estava em muito baixa velocidade e apenas encostei na bicicleta, derrubando-a. E a minha vítima, um piá de doze ou treze anos, com mais medo dos próprios pais do que dos eventuais ferimentos, não aceitou que eu o levasse ao hospital, pegou sua bicicleta e se mandou. Eu fiquei lá, atônita e apavorada. Há dois anos, um carroceiro entrou comigo em uma grande avenida e acho que o cavalo se atrapalhou e acabou batendo na lateral do meu carro. Teve uma vez em que eu fui dar uma ré, num estacionamento, e enfiei o carro numa árvore.
Apesar dos acidentes, todos apenas com danos materiais (exceto o do ciclista, mas ele fugiu, suponho que estivesse bem!), sempre me considerei boa motorista. Arrojada, corajosa, decidida, enchia a boca pra dizer que eu dirigia “feito homem”, porque sempre tive horror da maneira “mulherzinha” de dirigir, devagar, cheia de cuidados, indecisa, "atrapalhando" todo mundo. O jeito masculino de dirigir combina mais com a impaciência descontrolada que eu carrego comigo. É um jeito machista de pensar? Pode ser. Eu nunca me declarei uma feminista de carteirinha. Achava que para ser boa motorista, tinha que agir no trânsito de um jeito meio masculino.
Semana passada, comprei um carro novo. Viajamos com ele, fomos até Santa Maria, no interior do Estado. Estava evitando usá-lo para ir para o trabalho, mas como estive gripada durante a semana e estava muito frio e chuvoso nesta sexta-feira, resolvi ir de carro. Deixei o marido no seu serviço e segui para o meu. Ao ingressar da Carlos Gomes para a Nilo Peçanha, em Porto Alegre, entrei na frente de um outro automóvel. Tudo certo, tudo em tempo, distância adequada, não fosse um terceiro veículo, que cortou a minha frente, vindo da esquerda para fazer uma conversão à direita, me obrigando a frear bruscamente e provocando a colisão do carro que vinha atrás na lateral do meu carro. Um susto, uma frustração de bater um carro com menos de 900 km rodados, e um golpe no bolso, não mais do que isto.
Pois bem, depois de tudo isso, talvez esteja na hora de deixar a mulherzinha que eu sou dirigir o carro. Certamente ela será mais prudente do que o machão que eu encarno ao sentar diante do volante, vai se envolver em menos acidentes e terá mais chances de sobreviver. Acho que até hoje, não foi minha direção arrojada que salvou minha pele, mas sim um bocado de sorte e proteção divina. Está mais do que na hora de tirar o pé do acelerador e botá-lo no freio, suavemente, enquanto é tempo.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Marinês

Nunca fui uma pessoa de ter muitos amigos. Conheço uma pá de gente! Gente de todos os tipos, de todos os credos, raças, classes sociais, gente de quem eu gosto de verdade, do fundo do coração, mas sou muito, mas muito, seletiva para chamar alguém de amigo. Às vezes, nas rodas de conversa, chamo de amigo um conhecido qualquer para não ter que dar maiores explicações de quem vem a ser esse fulano de quem estou falando. Mas amigo de verdade, amigo que merece o título, é uma categoria especial de pessoa, que tem que ter uma capacidade muito específica: fazer vibrar a minha alma.
Meus amigos reconhecem os diferentes tons da minha voz. Meus amigos sabem o que significa a testa franzida. Meus amigos entendem as piadas. Meus amigos riem e sofrem comigo, perto ou longe. Meus amigos admiram meu jeito tosco, simples e sem muitos rodeios, e também admiram quando percebo que o rodeio é necessário e faço dele um recurso para não ferir. Meus amigos me questionam porque sabem que podem. Meus amigos reconhecem o porto onde podem se ancorar. Meus amigos sabem que eu sou sua amiga.
Dizem que só conhecemos de verdade uma pessoa quando já comemos com ela um quilo de sal. Duplo sentido nesta frase. Pode se referir ao tempo que levamos para consumir um quilo de sal em condições normais. Se colocarmos na comida pequenas pitadas de sal, vão passar alguns meses até que se tenha consumido um quilo do mesmo.  Mas podemos pensar na dificuldade, na quase impossibilidade, que é engolir um quilo de sal puro. Podemos pensar na metáfora de duas pessoas sobrevivendo juntas às maiores adversidades, “comendo, juntas, um quilo de sal”, e no quanto isto pode fazer com que conheçam uma à outra.
Nos últimos tempos, a vida me presenteou com uma amizade inesperada. Não sei  quase nada da minha nova amiga, não sei para que time ela torce, qual sua cor favorita, qual a comida preferida, o tipo de filmes que gosta de assistir, uma desinformação total. Não somos exatamente pessoas próximas. Convivemos pouco, nos vemos pouco. Inúmeras vezes a conversa se dá através de e-mails (longos e-mails!) ou em intermináveis reuniões. Mas o tempo de convívio é sempre muito rico e acho que sei sobre ela o mais essencial.
Eu a conheço há mais de sete anos. Sempre tive muita admiração por ela. É uma pessoa dedicada, questionadora, batalhadora, animada e bem humorada. Por conta de várias atividades e alguns ideais em comum, nos aproximamos bastante nos últimos dois anos e pouco a pouco, essa admiração transformou-se em um profundo sentimento de amizade. Minha nova amiga faz minha alma vibrar.
É difícil dar a dimensão do que esta guria tem me ensinado. Estou aprendendo com ela a observar as pessoas, a compreender o que desejam, com o que sonham, o que as motiva. Tenho aprendido a respeitar as diferenças, a ver o outro lado, a contemporizar, a não ser a dona da verdade. Ela me ensina a não dar importância ao que não tem importância e dar valor ao que realmente vale alguma coisa, a olhar o mundo ao meu redor e perceber a riqueza que existe nele. Ela me mostra o meu próprio valor e me motiva a seguir construindo um ambiente de trabalho mais saudável, mesmo quando penso estar sozinha nesta empreitada.  Marinês é inspiradora.
Em julho do ano passado, minha amiga ganhou seu quilo de sal. Sem nunca esmorecer, sem desistir, sem desanimar, mesmo diante da mais adversa das situações, ela segue dando exemplo de coragem e determinação.
Ninguém pode prever o futuro. Ninguém pode saber o que lhe é reservado. Só temos um punhado de lembranças... e o presente. Hoje, sou grata à vida por esta nova amizade. Hoje, me sinto feliz pela oportunidade de compartilhar meu caminho com uma pessoa tão iluminada.

terça-feira, 24 de maio de 2011

A arte da paciência

Não acontece com todo mundo, mas há pessoas que passam uma vida inteira tentando compreender a que vieram para esta vida. Tentam encontrar um sentido, um motivo, um propósito, sofrem em busca de uma resposta. O que eu vim fazer aqui?
Eu ouso dizer que sei o que vim fazer neste mundo. Estou aqui para aprender a arte da paciência.
Saber esperar. Mastigar vinte vezes a cada garfada. Não ter um surto no engarrafamento. Pensar antes de falar. Aguardar o resultado do exame. Começar de novo quando tudo dá errado. Fazer uma coisa de cada vez. A paciência passa longe deste corpinho.
Eu estou aprendendo. Bem devagar. Mas muito devagar mesmo!
A primeira lição aprendida foi a de não demonstrar o turbilhão interior. As pessoas costumam me considerar um caminhão de paciência. Quase todos. Quem convive comigo mais de pertinho sabe a dificuldade que é esperar a comida esquentar no microondas. Aquele é o minuto mais longo do planeta. Não, não é. Os mais longos são aqueles intermináveis ao ligar e desligar o computador. Eu saio de perto! Não consigo ficar contemplativa, com cara de paisagem, olhando a tela do computador se decidir a pedir o login. Vou fazer alguma outra coisa, é tempo demais para perder! Mas poucos percebem. Acho que eu tenho naturalmente uma cara de paisagem, porque muitas pessoas já me disseram o quanto me acham calma, serena, paciente.
Não sou calma. Sou controlada.
Esta foi a segunda lição. Se não consigo ser paciente de verdade, ao menos tenho que exercitar o autocontrole para não sair esmurrando coisas e pessoas (ai que às vezes dá uma vontade!). Respiro bem fundo, várias vezes. No meio dou umas bufadas, umas suspiradas, o coração quase sai pela boca, o frio na barriga é quase polar.
E quando se tem filhos pequenos... A virtude da paciência é imperativa. Nem é mais virtude, é requisito mínimo. A terceira lição vem diariamente com a minha filha. É minha personal trainner, e das mais exigentes.
E a quarta e derradeira lição a vida me oferece em pequenas surpresas, escolhidas a dedo. São aqueles momentos em que alguns segundos de espera fariam toda a diferença, mas que minha impaciência crônica não soube utilizar e que depois se transformaram em dias, semanas, anos de problemas.
A arte da paciência é o meu propósito. Acho que reconhecê-lo já me ajudou muito. Mas a estrada ainda é muito longa e eu estou com muita pressa.

domingo, 15 de maio de 2011

A pedagogia da derrota

Minha filha, assim como eu, é gremista. Hoje, perdemos o Gauchão. Mas ganhamos outras coisas.

Somos gremistas, eu e meu marido. Resolvemos que não iríamos forçar nossa filha a torcer pelo nosso time. Ela deveria escolher. Num período em que o arqui-rival Internacional estava em alta, pelo campeonato mundial em 2006 e pela possibilidade do bi em 2010, coincidindo com uma fase pouco produtiva do Grêmio, seria fácil ser seduzida pelo colorado, ainda mais com a torcida dos tios ao redor.
Mas, para minha alegria, e mais ainda do papai, ela resolveu ser gremista.
No início deste ano, fomos ao estádio Olímpico, nós três e o meu pai, assistir ao jogo Grêmio x Ypiranga (de Erechim), pelo campeonato gaúcho. Foi uma lavada: 5 x 0 para o Grêmio!
Antes de começar o jogo, ao tocar o hino do nosso time, ela chorou. Olhou pra mim e disse “Mamãe, eu tô emocionada!”. Agora estava decidido: eu tenho uma filha gremista!
Se assustou um pouco com a gritaria da torcida nos primeiros gols, mas depois já estava fascinada com aquela grande festa. Fomos ver o goleiro Victor de perto. Adorou as bandeiras, as cores, a cantoria da torcida.
Depois disso, a cada objeto a ser comprado, uma grande dúvida: “Quero rosa, que eu sou menina.” ou “Quero azul, que eu sou gremista.”? Doces dilemas a serem resolvidos!
Hoje, 15 de maio, na grande final do Gauchão, que não poderia ser mais emocionante, decidida num Gre-Nal, o Grêmio perdeu. Tudo foi muito equilibrado, mas perdeu nos pênaltis.
A decepção da pequena era evidente. Chegou a dizer que nem queria mais ser gremista. Hora da pedagogia da derrota entrar em campo. Vencer é bom, mas às vezes perder é mais pedagógico.
Que lições oferecer a uma menina de quatro anos que viu seu time perder? A primeira delas é a lealdade. Não se troca de time porque ele perdeu. O hino do Grêmio é uma aula de lealdade: “Até a pé nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver”. O que pode ser mais leal do que isto?
A outra, mais óbvia, é aprender a lidar com a frustração. Não dá pra ganhar sempre, não dá pra ter tudo na vida, haverão dias de vitória e dias de derrota e o aprendizado deve acompanhar cada um deles.
Dá para aproveitar e usar o momento para ensinar sobre gentileza, cordialidade, fair play, na linguagem do esporte. Pedi que parabenizasse o tio colorado, o que ela fez tranquilamente: “Parabéns, dindo, porque o seu time ganhou. Que bom pra vocês!”.
Hoje senti muito orgulho! Do time, um pouco menos, mas da filha, um transbordamento! Ela aprendeu a lição de hoje!

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Irena

Irena era minha avó. Quantas saudades! Neste dia 12 minha ela teria feito 92 anos.

Ela era uma mulher fantástica! Dona de uma força e uma coragem indescritíveis. Determinada, nunca se curvou às dificuldades. Uma taurina típica! Um livro de auto-ajuda não conteria tantas mensagens de estímulo e motivação quanto a história da sua vida.
Ela nasceu no interior de São Sebastião do Caí, numa região hoje pertencente a Caxias do Sul. Casou-se com Leonello e foram viver num lugarzinho quase inóspito chamado Invernada.
Ela era professora da escolinha rural. Naquele tempo, as crianças eram alfabetizadas por quem sabia um pouco mais do que elas. Minha avó nunca teve nenhuma formação. Apenas boa vontade. Na escola rural, as séries iniciais eram reunidas em uma única turma. As crianças aprendiam a ler, escrever, rudimentos de português e matemática, tinham aulas de prendas domésticas, algumas técnicas agrícolas e o ensino religioso. Boa vontade era tudo o que se necessitava naquela época.
A jovem Irena sofreu oito abortos antes de conseguir ter seu primeiro filho, Agostinho, meu pai. Naquela época, isto era terrível, em parte pelas condições sanitárias de se lidar com os abortos espontâneos, em parte porque isto era muito mal visto.
Quando meu pai nasceu, a felicidade era tanta que minha tia-avó dizia “Só a Irena que tem filho!”, num comentário picante sobre a corujice da minha avó.
Outros três filhos vieram depois: Tereza, Leonel e Antonio, este último faleceu logo ao nascer, por um problema congênito.
E ainda criou, como sua filha de sangue, a sobrinha Natália. Mais velha do que as outras crianças, Natália tomou conta de todos. Foi o esteio da casa, a viga mestra que não deixava tudo desabar à sua volta.
Quando Leonel estava com cinco anos, em uma festa de casamento no interior, foi brincar em um rio, se afogou e morreu. Foi, acredito, a mais dura perda, a mais sentida, a que quase a derrubou.
Foi no trabalho que encontrou forças para seguir em frente.
O destino às vezes apronta das suas. Um dia, foi ao banco pedir um empréstimo para a compra de máquinas de costura. Pretendia montar uma sacaria. As condições não eram as mais favoráveis, mas para sua surpresa, numa coincidência inacreditável, o homem que a atendeu no banco havia ajudado a tirar o corpo de Leonel de dentro do rio. Ele não negaria o empréstimo àquela mulher que estava diante de seus olhos, não depois de ter visto muito de perto todo o seu sofrimento.
A sacaria foi aberta, Agostinho e Tereza estudaram, formaram-se, para deleite e orgulho da dona Irena. “Quando um dos meus filhos se forma, eu me formo junto!”, ela dizia. E falou isto também para cada neto que obteve seu diploma.
Meus pais se casaram e, nos primeiros anos de casamento, moraram numa casa bem próxima à de minha avó. Meu pai trabalhava na sacaria e estudava à noite. Minha mãe lecionava de dia e estudava à noite. E eu ficava com minha avó durante o dia, ia para casa só para dormir.
Foi assim até meus quatro anos, quando nos mudamos para outra cidade, por conta do novo trabalho do meu pai.
Com a dona Irena, conheci a história da família. Todo o meu referencial familiar veio dela. Todo o meu desejo de conhecer esta história veio dela. Ela me ensinou o valor da família, a força que este núcleo pode ter, a coesão que os laços de sangue provocam e que os laços de afeto solidificam.
Quando fiz minha primeira comunhão, ela, que também era minha madrinha, estava presente na missa. Eu não a achava, na hora de renovar as promessas do batismo. Era uma criançada, cada uma procurando seu padrinho e sua madrinha, eu não consegui vê-la naquela confusão. De repente senti a sua mãozinha no meu ombro e a voz suave: “Neca, eu estou aqui.”. Foi sempre assim. Ela estava ali. Mesmo que eu não a visse, mesmo que nem estivesse presente de fato, a força dos seus ensinamentos, a referência que ela sempre representou para mim, se faziam sentir no meu espírito.
Minha avó partiu com 90 anos de idade. Meu avô havia morrido seis anos antes. Numa noite, ela levantou de sua cama, caiu e quebrou a cabeça do fêmur. Disse que havia visto o vô no quarto e que ia atrás dele. Dias depois, foi submetida a uma cirurgia ortopédica, mas não resistiu. Foi ao encontro do seu amor, Leonello. Nos deixou num domingo, dia 29 de novembro de 2009.
Ficaram as lembranças e o legado de determinação e amor incondicional à família. Impossível não querer ser um pouco assim.

domingo, 8 de maio de 2011

Adeus a uma amiga

Minha Brida partiu.
Meu coração está apertado.
Mas diante de tantas dificuldades, foi melhor para ela.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O que esperam de nós?

Dia 08 de maio é Dia das Mães

O que nossos amigos esperam de nós? Nossa lealdade, nossa presença, nosso sorriso.
O que nossos vizinhos esperam de nós? Que as festas na nossa casa acabem pontualmente às 22 horas.
O que a sociedade espera de nós? Que possamos cumprir nosso papel de cidadãos ativos, comprometidos com o bem comum.
O que nossos governantes esperam de nós? Que paguemos nossos impostos, que votemos nos seus partidos, que marquemos "ótimo" na pesquisa de opinião.
O que nossos chefes esperam de nós? Que sejamos ágeis e dedicados no cumprimento de nossas tarefas.
O que nossos subordinados esperam de nós? Nosso respeito, nossa consideração e nossa parceria.
O que nossos pais esperam de nós? Que mantenhamos os olhos abertos e as pernas fechadas até criarmos juízo.
O que nossos maridos esperam de nós? Que nossa cinturinha fina, os peitos e a bunda firmes permaneçam assim pelo maior tempo possível e, depois de tudo caído, que ao menos o nosso bom humor possa permanecer firme.
O que nossos filhos esperam de nós? Amor incondicional, compreensão incondicional e a Barbie Moda e Magia ou o Max Steel no dia da criança.
O que nossas mães esperam de nós? Que mesmo diante de tantas expectativas, pressões e cobranças, possamos ser simplesmente quem somos e absolutamente felizes.

Às mães e aos filhos, um feliz dia das mães!

terça-feira, 26 de abril de 2011

Se você quer ser amado, seja amável

Meu Orkut trazia uma frase interessante no espaço Sorte de hoje:
"Se você quer ser amado, seja amável."
Amável é aquilo que é digno de ser amado (está no dicionário, assim como quebrável é aquilo que pode ser quebrado, lavável é aquilo que pode ser lavado, visível é aquilo que pode ser visto...).
Costumamos aplicar o termo “amável” para qualificar aquelas pessoas que são agradáveis, gentis, doces, ternas. Mas somente estas são “dignas de serem amadas”?
“Você é muito amável!” dizemos quando alguém nos faz uma gentileza, nos trata com deferência, nos dedica uma especial atenção. Se tomarmos a definição ao pé da letra, estamos dizendo “Por ser tão bonzinho comigo, você merece ser amado”.
Será que é isto que a Sorte de hoje do Orkut estava querendo dizer: “Se você quer ser amado, faça por merecer, seja digno disto.”?
Não tenho a intenção aprofundar o assunto. Apenas achei a frase curiosa. Deu uma coceirinha no cérebro, uma certa inquietação.

domingo, 24 de abril de 2011

Aletiane

Minha gata Brida quase morreu. Aletiane é o anjo que me ajudou a salvá-la.

Era setembro de 2001. Havia me separado há alguns meses, tinha sido recém demitida de um emprego horroroso, mas que botava comida na minha mesa, me sentia sozinha, incompreendida, e resolvi adotar um bichinho de estimação. Por morar em um apartamento e por habitualmente não parar muito em casa, escolhi ter um gato, ou melhor, uma gatinha, que costuma ser mais higiênica e comportada.
Soube de uma amiga que estava com uma ninhada em casa. Sua gata Jade, uma belíssima siamesa, havia tido gatinhos. O pai era um gato vira-latas e os filhotes não saíram puros. Não me importava a raça. Os gatinhos estavam com 45 dias, tempo suficiente para serem desmamados. Fui até lá para escolher.
Lá estava a pobre Jade, num estado de miséria, com uns quantos pendurados nas tetas, mas me chamou a atenção, tentando escalar a caixa de papelão, uma gatinha preta de pelo arrepiado e miado estridente. Paixão à primeira vista! Não precisei nem olhar para os demais, era aquela rebelde e ousada que eu queria!
Já tirei da caixa chamando pelo nome, que havia sido escolhido quando resolvi ter uma gata: Brida.
Teimosa, impaciente, desconfiada, briguenta, cabeleira arrepiada, ela se parece muito comigo. Gosta dum cafuné, mas vai com calma que ela morde! Não invade o espaço dela que ela arranha! Mas é leal e amiga.
No ano seguinte, ela engravidou de um gatinho que rondava o apartamento térreo onde morávamos, em Tubarão, Santa Catarina. Eu viajei para Canoas, num fim de semana, e quando voltei, ele havia invadido o apartamento por uma das basculantes que ficavam no alto (bem alto!) da janela, e os dois tiveram um romance tórrido! Não havia um grão de ração e uma gota d’água! Meses depois, Brida teve seis gatinhos, dos quais escolhi novamente uma fêmea para ser a companheira da mãe. Wicca tem a personalidade oposta: tímida, quietinha, preguiçosa, comilona (está obesa!), carinhosa, é um pouco meu alter-ego, porque às vezes também sou assim.
Ambas me acompanham aonde eu vou. Já me mudei nove vezes de lá para cá. Sempre estiveram junto comigo. Tive minha filha neste meio tempo, elas a respeitam e tratam com carinho. A Brida, tão arredia, deixa minha filha brincar com ela à vontade, sem nunca fazer nada contra ela, nem arranhões, nem mordidas, nada.
Dias atrás, minha Brida sumiu. Nunca tinha feito isso, nestes quase dez anos. Desconfio que ficou presa em algum lugar, mas a procurei desesperadamente e não consegui encontrá-la. Dias depois, voltou para casa, mas doente.
Encontrei-a em sua casa, tremendo, espumando, sem força nas patas, achei que tivesse sido envenenada ou que pudesse ser raiva. Puxei-a para fora com uma vassoura, porque tive medo que estivesse mesmo com uma doença grave e me mordesse. Sequer reagiu. Levei-a as pressas a uma clínica, escolhi a mais próxima da minha casa, sem nem me preocupar com o preço, pensando que talvez não tivesse tempo de levá-la mais longe.
Ela foi atendida por uma veterinária firme e determinada chamada Aletiane. Além do nome, esta mulher tem de incomum um especial carinho pelos seus pacientes. Aletiane foi muito além do seu papel profissional. Mostrou-se comprometida, competente, esclareceu minhas dúvidas, mas ofereceu mais do que isso. Ofereceu o que a Brida mais precisava naquele momento, o seu afeto.
A doença da Brida é um mal que atinge gatos, especialmente os mais gordinhos, chamado lipidose hepática. O gato fica sem se alimentar e seu fígado começa a se deteriorar, formando vacúolos de gordura. Li que ela mata 90% dos gatos nas primeiras 72 horas, mas passado este tempo, pode haver recuperação. É um processo longo, demorado, caro, exige paciência e dedicação, porque durante muitos dias o bicho precisa receber alimentação forçada, através de sonda ou seringa. Podem passar até três meses até que o gato volte a comer espontaneamente.
Aletiane me encorajou a não desistir. Investiu seu tempo e seu carinho para salvar a minha Brida e me inspirou a levar em frente esta empreitada. Teria sido mais fácil solicitar uma eutanásia? Certamente, mas não teria coragem, diante da determinação de Aletiane em tratá-la.
Após uma internação de uma semana, algumas idas e vindas para a clínica, Brida está em casa e eu a alimento usando uma seringa e uma dieta especial, concentrada em proteínas.
Exercito diariamente a paciência, para alimentá-la, para fazê-la se movimentar, e vibro com cada pequena reconquista de autonomia da minha amiguinha: usar a caixa de areia, voltar a se lamber, voltar a se coçar, começar a brigar comigo enquanto a alimento, dar pequenos passos pelo quintal.
Sinto-me feliz por não ter desistido de tratá-la. Talvez a Brida tenha ainda uns poucos anos de vida, os gatos vivem mais ou menos 15 anos, assim como os cães. Mas gostaria muito que minha gatinha pudesse ter uma morte serena e tranquila, sem sofrimentos, a mesma morte que cada um deseja para si.
E sinto-me grata a Aletiane, esta veterinária que demonstrou em suas atitudes o valor da persistência e que foi, verdadeiramente, o anjo da guarda da minha gatinha.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Caminhos

Gosto de olhar para trás e ver o caminho que percorri.
Minhas memórias mais antigas nem são minhas, são histórias da minha gente, da minha família, coisas que me contaram, mas que compõem minhas lembranças de forma tão vívida quanto aquilo que eu mesma vivi.
A minha própria história se mistura a estas outras e por elas eu consigo compreender melhor quem eu sou, porque estou aqui, porque tenho estes gostos, estes gestos, estas verdades.
Gosto de resgatar este meu passado, que não é meu, mas também é. E gosto de me inserir neste contexto. É como eu me identifico, me aprendo.
Mas também gosto de olhar para a minha própria estrada, aquela que eu mesma pisei. Cada pedra, cada vista deslumbrante, cada florzinha, cada viajante que por ela passou. Gosto de reviver os caminhos percorridos. Esses caminhos que me fizeram chegar até aqui, ao que sou hoje, à visão de mundo que tenho, aos conhecimentos que adquiri, aos laços que construí.
Gosto de me debruçar sobre fotos, cartas, e-mails (difícil deletar!) ou simplesmente lembranças, recordar como foi, o que foi dito, o que foi feito, que sentimentos foram despertados. 
Tudo isso me ajuda a entender meu presente, como os acontecimentos me afetam, as minhas reações a cada situação. Olhar para trás é olhar para dentro.
Não sou saudosista, não gostaria de viver tudo outra vez. Cada coisa a seu tempo. Julieta Venegas já diz “El presente es lo único que tengo, el presente es lo único que hay”. Aqui e agora é onde a vida acontece. Mas conhecer e compreender como as pedras do meu alicerce se encaixaram me ensina a assentar as próximas de uma maneira mais sólida.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Promessas de Ano Novo

Escrevi esta mensagem no final de 2007, e enviei por e-mail aos meus amigos.

Promessas de Ano Novo:
1. Perder peso! Deixar para trás todo esse peso enorme que carrego nos ombros quando me preocupo à toa, quando assumo problemas que não são meus, quando me deixo abater pelas críticas!
2. Economizar mais! Guardar mais dinheiro para gastar com coisas que me divertem, me fazem mais bonita, mais culta e mais feliz!
3. Investir nos meus sonhos! Nos sonhos, nas pizzas, nas lasanhas, nas panquecas, nos churrascos e todas as delícias que tiver vontade de comer!
4. Investir no conhecimento! Procurar conhecer de verdade as pessoas ao meu redor, com suas virtudes e seus defeitos, e não apenas superficialmente, amando-as exatamente como são!
5. Ser mais flexível! Ando mesmo precisando fazer uns alongamentos!
6. Não me cobrar tanto! Se nenhuma destas promessas puder ser cumprida, que ao menos eu possa deixar pra lá!
Feliz Ano Novo a todos os meus amigos!
Obrigada pelo ano que passou! Vocês fizeram dele um ano mais feliz!
Que em 2008 possamos estar próximos, nem que seja em pensamento!

Vidraças

Esta é a razão para o nome deste blog.

Li outro dia, numa dessas mensagens em power point que os amigos às vezes enviam, um suposto provérbio chinês que dizia: “É fácil ser pedra, difícil é ser vidraça.”
Se é um provérbio e se é chinês, sei lá. Mas apesar da origem incerta, a profundidade da frase me tocou.
Fiquei pensando em quantas vezes já fui pedra e em quantas vezes assumi o papel da vidraça e quanto ser a primeira é mesmo mais fácil do que ser a segunda.
A vida é feita de escolhas e, hoje, escolho ser a vidraça.
A vidraça é transparente, através dela dá para ver o mundo.
A vidraça é protetora, impede a presença do vento e o frio.
A vidraça expõe, revela, mostra o que há dentro.
Algumas vezes ainda sou pedra? Ah, claro que sim! Uma pedra bem atirada contra a vidraça alheia, que efeito devastador! Cacos para todo o lado, aquela destruição... E a pedra ali, caída no chão, inerte e inútil após o estrago.
Hoje, escolho ser a vidraça.
É a escolha pelo mais difícil. Mas, quem sabe, um vidro temperado?

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Mãe? Eu?

Tenho uma filha de 4 anos. Não imaginava que eu pudesse me sair tão bem.

Mãe? Eu?

Sempre tive medo da maternidade. Medo de perder a liberdade, medo de não dar conta, medo da dor do parto, sei lá eu quantos outros medos.
Mãe? Eu? Fugi o quanto pude. Terminei o primeiro casamento sem um filho e com o fardo de não ter dado um neto ao sogro, que faleceu. Anos depois, novo casamento, e com ele os medos novamente.
Não queria ser mãe. Simples assim. Algumas amigas chegaram a dizer que eu tinha algum problema, deveria me tratar. Como assim não quer ser mãe? Meu livre direito de escolher meu destino era uma doença a ser tratada!
Foram longos anos convivendo com o medo de um lado e o preconceito do outro. Século vinte e um! Não podia não querer ser mãe, porque sou mulher e porque mulheres foram feitas para isso.
Um dia, depois de um ano e meio do segundo casamento, eu quis. Simples assim. De repente. “Agora eu quero ser mãe”. O mesmo direito que me assistia ao não desejar um filho, me amparou na mudança de ideia.
Eu quis e fiz. Parei com a pílula e dois meses depois estava grávida. A aventura mais fantástica da minha vida!
Descobri um sem fim de aptidões e conhecimentos inatos, coisas que nem suspeitava que pudesse ser capaz. Descobri um corpo que eu não desconfiava que tivesse. Uma paciência, uma tolerância e uma resistência que até então não combinavam em nada comigo.
Meu corpo grávido mudou minha percepção de mim mesma. Aprendi a me olhar com carinho e a respeitar meus limites. E, acima de qualquer coisa, aprendi a esperar. Esperar o dia da consulta, o dia da ecografia, esperar passar a náusea, esperar diminuírem as contrações antes de sair para o trabalho, esperar passar a dor nas pernas antes de continuar subindo as escadas, esperar a hora de parir.
Aos poucos, fui percebendo que meu medo de ser mãe era, na verdade, o medo de não reconhecer essa nova pessoa que a gravidez me revelou, o medo de não conseguir abrir mão dos meus defeitos.
Meu medo de ser mãe não era por causa do nascimento de um filho, mas sim pelo meu próprio nascimento, porque não haveria como passar por tudo isso sem que eu nascesse novamente.
Nasci de novo. Gostei do que vi. Mãe? Eu? É claro que sim!

Um plantão especial

Escrevi este texto em 04/10/2009, e enviei por e-mail às residentes e preceptoras da ênfase Oncologia e Hematologia, da Residência Integrada em Saúde, do Grupo Hospitalar Conceição, da qual eu faço parte, como preceptora da Farmácia.

No plantão da quimioterapia deste domingo, dia 04 de outubro, aconteceu algo realmente inusitado. O plantão estava tranquilo, havia pouca coisa a ser produzida, já estava quase terminando, quando olhei pela janela da sala da QT e vi duas andorinhas presas na passarela de acesso à Central de Misturas Injetáveis. Essa passarela, toda envidraçada, tem apenas uma abertura bem no alto. Quando o dia está ensolarado, fica um ambiente muito quente, merecidamente apelidado de “corredor do inferno”.
Pois lá estavam as duas, tentando sair e batendo-se contra os vidros, já que não encontravam a passagem por onde haviam entrado. Aparentemente já estavam bem cansadas de tanto debater-se e também pelo calor da passarela.
Larguei tudo o que estava fazendo e corri para tentar tira-las de lá. Como a porta da CMI para a passarela estava trancada, desci até a Farmácia Central e subi a escada que dá acesso da Farmácia para a passarela. As duas, seguiam tentando sair e também fugir de mim, chocando-se com a vidraça. Consegui pegar uma delas, que encurralei num cantinho e fui atrás da outra. Acabei deixando a primeira escapar. Mas ambas estavam tão exaustas que logo consegui pegar as duas nas mãos.
Tão pequenas, tão frágeis, tão lindas!!!
Desci até a Farmácia e mostrei-as aos plantonistas, um pouco para exibir meu feito heróico, mas também para dividir aquele momento com outras pessoas. Todos correram para olha-las.
Então saí para a sacada da Farmácia e as soltei no chão. Uma voou imediatamente. A outra ficou ali, paradinha, talvez cansada demais para sair voando. Levei a mão para pega-la novamente e aí a surpresa: ela subiu sozinha no dorso da minha mão e ficou ali por alguns instantes. Me deixou fazer um cafuné na sua cabecinha e então saiu voando.
Este domingo era dia de São Francisco de Assis. E eu fui presenteada.

Mais tarde, voltando pra casa, vinha pensando no acontecido. Dá pra traçar um paralelo muito vivo entre esses bichinhos e os pacientes que atendemos.
Quantos deles vêem nesta difícil situação que é o câncer e pergunta-se como foi parar ali? E debatem-se contra vidraças invisíveis, sofrendo e precisando de alguém que os acolha? E quantas vezes, ao tentar ajuda-los, nós os assustamos, a ponto de tentarem fugir de nós, como se fôssemos piores do que o problema que carregam?
Quantas vezes, ao conseguir "capturar" algum deles, temos certeza que agora está nas nossas mãos e está seguro e temos a certeza de que estamos no controle da situação, então, de repente, ele voa das nossas mãos? E como temos trabalho para resgata-los?
Quantas vezes, ao tentar ajuda-los, corremos o risco de machuca-los das mais diversas formas? E quantas vezes de fato machucamos?
E quando finalmente conseguimos “prende-los”, quantas vezes os carregamos como troféus da nossa competência?
Algumas vezes, ao solta-los, simplesmente batem asas e voam. Outros, mais por gestos que por palavras, apertam nossa mão, num misto de amizade e gratidão. Quantas vezes isso nos toca e nos comove?

Ajudar as andorinhas foi emblemático para mim. Valeu o meu domingo, valeu todos os domingos que estive em plantão.

Feliz Dia do Farmacêutico

Mensagem enviada por e-mail aos colegas de profissão no dia 20/01/2010, Dia do Farmacêutico.

A profissão farmacêutica já me proporcionou os mais variados sentimentos e emoções...
Já senti esperança, expectativa, ansiedade, quando era estudante e vislumbrava um futuro de realizações e sucesso.
Já senti angústia, medo, descrença, quando passei algum tempo desempregada.
Já senti raiva, vergonha, quando vi colegas vendendo seu saber por muito pouco, contrariando nosso código de ética, colocando em risco a saúde das pessoas.
Já senti orgulho ao conhecer a história de colegas que engrandeceram a profissão, contribuindo não só para a saúde, mas para um mundo melhor.
Já tive vontade de abraçar o mundo e já tive vontade de abandonar o barco.
Já construí castelos de sonhos e me meti em cavernas de desilusão.
Provei o gosto da crítica e do elogio.
Tive a tristeza de não ser ouvida quando sabia que minhas palavras poderiam ajudar a preservar ou recuperar a saúde de alguém... E tive a alegria de algumas vezes poder contribuir através do meu conhecimento.
Mas a cada dia, pouco a pouco, vou descobrindo o que essa profissão tão bonita tem a oferecer. E vou percebendo que sempre há mais e mais para desenvolver, conhecer, ajudar, amar.
A profissão farmacêutica me mostra, todos os dias, o valor da solidariedade, do envolvimento, das pessoas.
Meu sentimento hoje pela minha profissão é de uma profunda ternura e um grande respeito.
Que neste Dia do Farmacêutico, todos nós, colegas, possamos nos sentir felizes e realizados!
Um forte abraço!
Feliz Dia do Farmacêutico!

A vitória do desespero

Enviei esta crônica aos meus amigos e a alguns políticos, por e-mail, no dia 24/10/2005, logo após o referendo sobre a proibição da venda das armas de fogo.

A vitória do desespero

A vitória do NÃO no referendo das armas é a vitória do desespero sobre a confiança de um povo no seu governo. É a vitória da certeza de que estamos desprotegidos sobre o pressuposto lógico de que o poder público deveria estar cuidando da nossa segurança.
Eu votei Não. Mas eu não sou uma assassina. Eu não quero que crianças morram porque seus coleguinhas levaram escondidas para a escola as armas que seus pais deixaram ao seu alcance. Eu também não quero que algum marido ciumento saia disparando tiros pela rua porque sonhou que a mulher o estava traindo com um vizinho. Muito menos ainda, desejo que um irmão atire no outro, no meio de uma brincadeira perigosa. Eu nem ao menos tenho uma arma, nem desejo comprar uma.
As pessoas que votaram Não o fizeram porque estão com medo, assustadas com a crescente violência, o número aterrador de assaltos, de estupros, o tráfico de drogas e a impunidade dos verdadeiros bandidos. As pessoas que votaram Não o fizeram como um clamor ao poder público, implorando por mais segurança. Com seu voto, estão gritando: Estou tendo que fazer um trabalho que não deveria ser meu!!!!!! Estou tendo que cuidar da minha segurança quando o Estado deveria cuidar disso!!!!!!!
A opção "Não" poderia ser perfeitamente substituída pela opção "Socorro", porque votando Não, é isso que a população está pedindo: Socorro!!!!
Espero que o governo compreenda essa mensagem. Nunca o aviso sonoro da tecla "Confirma" ecoou tão alto. Precisamos de proteção e queremos que ela venha de quem tem a competência e a OBRIGAÇÃO de cuidar disso.
Que as armas dos cidadãos de bem possam ficar bem guardadas, em caixas no fundo dos armários, como uma relíquia que se tem de um passado já distante, não porque estão proibidas, mas porque são desnecessárias.