quarta-feira, 27 de julho de 2011

Decorando a vida

Preparar decoração para festas é uma espécie de terapia

Quando minha filha estava para fazer um ano, passei por um momento muito difícil. Trabalhava em uma área complexa da farmácia hospitalar: a farmácia do bloco cirúrgico. Desde que era estudante de Farmácia, tinha uma grande vontade de trabalhar em um hospital. A farmácia hospitalar é uma área interessantíssima, que envolve atividades bastante diversas e pouco rotineiras, o que combina de uma maneira muito especial com meu jeito avesso a fazer sempre as mesmas coisas. Mas uma farmácia de bloco cirúrgico ultrapassa até mesmo as minhas medidas do que seria uma saudável ausência de rotina. Tudo é muito rápido, tudo é para ontem, os pacientes estão abertos, na sala cirúrgica, e o material tem que estar disponível, não importa se está em falta, se não há dinheiro para comprar, se o fornecedor não entregou em tempo, seja como for, tem que ter. É quase humanamente impossível dar conta disto sem surtar. E mais ainda quando se faz o meio de campo entre a área técnica (cirurgiões, anestesistas, enfermeiros) e a área burocrática (compradores, almoxarifes, gerentes) e este é o grande limbo em que o farmacêutico hospitalar muitas vezes se encontra (e mais ainda o farmacêutico do bloco cirúrgico). O farmacêutico hospitalar é, muitas vezes, um tradutor, aquele que explica à área administrativa o que a área técnica necessita, e traduz de volta, para a área técnica, porque a área administrativa não pode providenciar. Este foi meu inferno astral durante um longo período (foram alguns meses, mas se tivesse sido uma semana, já teria sido um longo período).
Então, comecei a entrar em parafuso, sair da casinha, pirar na batatinha, literalmente entrei em um processo de depressão profunda e da qual só saí com muita força de vontade, muita consciência de mim mesma e uma terapia até então inesperada: preparar a festa de um ano da minha filha.
Quando consultei minha psiquiatra, ela me receitou um antidepressivo e me deu dez dias de atestado. Os primeiros três dias usando o medicamento foram terríveis. Sentia-me tonta, cansada, com sono o tempo todo. Mas principalmente não conseguia me desligar do trabalho. Passava olhando e respondendo e-mails, sem o menor respeito com o tempo que eu necessitava para recuperar minhas forças.
No quarto dia, quando comecei a me sentir mais adaptada ao remédio, combinei com minha irmã que iríamos preparar a festa.
Começamos definindo o tema: Backyardigans (ou, na linguagem da pequena, “Cacáqui”!), que ela curtia desde bem bebê, quando começou a prestar atenção ao que via na TV.
Depois, montar o cenário: centenas de flores coloridas, duas árvores enormes, carregadas de frutas, arranjos de mesa com flores e insetos de EVA, e uma casa, que adaptei a partir de um baú em forma de casinha. Muita cor, muito brilho, e o ânimo voltando no ritmo das tesouradas. Cada passada de cola para juntar cálice e corola, juntava também alguns pedaços meus que ficaram espalhados pelo caminho. Cada arranjo construído era uma reconstrução interna, mental.
A festa foi um sucesso! Não só pela decoração, é claro, mas principalmente por haver reunido muitos amigos e familiares, pelo bom clima, pelas comidas que estavam uma delícia e pela aniversariante, que estava um arraso!
O retorno ao trabalho foi tranquilo e consegui superar esta fase tão delicada. É claro que o tratamento para a depressão é muito longo e não de apenas alguns dias, mas foi inegável o efeito benéfico produzido pelo envolvimento com esta festa.
Daí em diante, tenho me envolvido com frequência na decoração de festas. Não por dinheiro, mas como um hobby, ou como uma terapia ocasional, para aliviar as tensões do dia a dia. Foram mais alguns aniversários infantis, de lá para cá e, agora, estou preparando a decoração para a formatura do meu irmão. É um pouco diferente, é adulto, é homem, os tons precisam ser mais sóbrios, menos coloridos, mas não é menos interessante de se fazer. É preciso um pouco mais de requinte, um certo refinamento, que a festa infantil não exige. Me ajuda a ver, em mim, um lado que não costuma vir à tona.
Lidar com esta arte efêmera, que se acaba em poucas horas, que só é vista por quem foi à festa, tem tornado a vida mais leve em momentos que poderiam ser simplesmente angustiantes. Ajuda a compreender que, como em uma festa, tudo passa, mesmo o que é belo, mesmo o que nos envolve por tanto tempo, mesmo aquilo a que dedicamos tanta atenção e amor. Decorar festas me ajuda a exercitar o desapego, dando a certeza de que tudo tem fim e que isto não é, necessariamente, mau.  Decorar a vida, transformar a futilidade em algo pleno de significados, esta é minha terapia.

domingo, 10 de julho de 2011

A Disneylândia é aqui... na sala

Quando a criatividade substitui o dinheiro e os brinquedos mais caros.

Como acontece muitas vezes, eu estava sentada no computador da sala da casa da minha mãe, jogando paciência spider, e minha filha brincando no sofá, com seus brinquedos.
Vai tirando de dentro da estante um monte de bonecos: bonecas de pano (eu adoro e acho que ela também), a Minimim (uma bonequinha que é a cara da minha filha, por isso o nome), uma linda Minnie de vestido rosa com bolinhas brancas, o Leitão (aquele, do ursinho Puff, mas que, por ser todo cor de rosa, minha guria só chama de “Leitona”), uma Branca de Neve de pano, que eu comprei num artesanato, uma boneca “Meu Bebê” antiga, que era da minha avó (isso mesmo, da minha avó, e ela comprou depois de já ser avó!) e acho que haviam algumas outras, que nem cheguei a ver.
A conversa estava animadíssima entre “as gurias”! Um troca-troca de vestidos, de blusas, então comecei a prestar atenção no “evento”. Estava acontecendo uma eleição. Aparentemente estavam todas em uma sala de aula disputando o título de mais bela princesa (que também seria a ajudante da professora).
Princesa? Sim! Cada boneca era uma princesa da Disney! Uma bonequinha de pano com cabelos pretos era a Pocahontas, outra, de cabelo lilás, era a Bela Adormecida, tinha uma loirinha de chapéu que era a Cinderela. A Branca de Neve e a Minnie eram elas mesmas. Aquela arrumação toda era para concorrerem ao título e, olha só que surpresa, a eleita mais bela princesa foi... a “Leitona” (também no papel dela mesma!).
Em seguida, a “Leitona” teve que assumir o posto de ajudante da professora. E esta, vez por outra, esquecia quem havia sido escolhida para o cargo e pedia ajuda para outra aluna. Mas logo percebia o engano e pedia desculpas, ao que a aluna respondia “Não te m problema, eu ajudo!”.
Minha filha tem alguns brinquedos relativamente caros, mas são poucos, dentro de um universo de quinquilharias, muitos brinquedos muito baratos e uma infinidade de itens artesanais, que são os meus favoritos, pela arte que representam, pela originalidade, por remeter a um certo aconchego de antigamente e porque costumam ter um custo bastante acessível.
A brincadeira foi tão animada, tão divertida, fiquei me deliciando com o encanto do momento.
Minha filha ficou entretida durante horas nessa função e eu fiquei muito feliz com o que estava presenciando: a criatividade e a imaginação num sinergismo mágico em plena sala de casa.
Não é preciso muito dinheiro, nem brinquedos mega-caros!
Espero que, com o passar do tempo, ela possa preservar esta capacidade de improvisar, de inventar, de ser verdadeiramente feliz com aquilo que tem.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Pitando

Hoje eu vi uma coisa bem nojenta!

Que o cigarro é extremamente difícil de deixar, todo mundo sabe. A dependência causada pela nicotina é muito complicada de combater e parar de fumar exige sacrifícios e disciplina. Mas às vezes eu presencio algumas cenas proporcionadas pelo fumo que chegam a ser inacreditáveis. Trabalhando num hospital, estas imagens são verdadeiramente bizarras!
Tempo atrás, vi uma jovem, melhor dizendo, uma menina, sentada na escada da farmácia que fica em frente ao hospital. Sobre suas pernas, um bebezinho que, pelo tamanho, era recém-nascido. O nenê estava solto sobre as pernas da garota, ela não o estava segurando. Segurava, sim, o cigarro, que fumava sem nenhum constrangimento diante daquela pobre e indefesa vítima que tinha no colo. Aliás, mães fumando enquanto levam os filhos pela mão para a consulta por causa da asma, são muito mais comuns do que eu gostaria de ver.
Outro dia, vi um homem de meia idade com um nódulo imenso (devia ter o tamanho de uma laranja) no pescoço, com uma lesão ulcerada neste nódulo, e o pito na boca. Ao seu lado, uma menina de seus nove, dez anos.
No pátio do hospital, numa área em que era tolerado fumar (agora esta área foi extinta, como manda a boa coerência de uma instituição que pretende cuidar da saúde), um homem fumava pela traqueostomia! É claro que tinha ao lado um jovem acompanhante para admirar a cena.
Me pergunto, por que esta predileção em ter a platéia infantil para esse tipo de absurdo?
Hoje, enquanto esperava meu ônibus na parada em frente ao hospital, o extremo da nojeira: uma mulher jovem, razoavelmente bem vestida, pobre, provavelmente, mas com alguma condição financeira, o que faz pensar que tenha algum acesso à formação ou, minimamente, à informação. Estava acompanhada da mãe e da filha, uma menina com não mais que quatro anos, ainda chupando o bico. Ambas também estavam bem apresentadas, confirmando a hipótese de que não se tratam de miseráveis. Pois a tal mulher estava fumando. Lá pelas tantas, ela deixou cair no chão o cigarro, que estava pela metade. Conversando com sua mãe, simplesmente abaixou-se, juntou o cigarro e o colocou novamente na boca. Não deu nem uma assopradinha, nem uma limpadinha, nada, botou na boca e seguiu fumando e com a conversa que estava bem animada.
Se a pequena que estava com ela tivesse deixado cair a chupeta e a juntasse e colocasse diretamente na boca, como o exemplo materno bem ensinou, o que teria acontecido?
a)      A criança levaria uma bronca da mãe?
b)      A criança levaria um safanão da mãe?
c)      A mãe explicaria gentilmente “faça o que a mamãe diz, mas não faça o que a mamãe faz”?
d)      Azar o da criança, a mãe nem notaria, aliás nem a avó (parece que esta também não percebeu que a filha juntou o cigarro do chão e botou na boca)?
Uma parada na frente de um hospital: por ali circulam os sapatos de um monte de gente que anda pelos corredores, que pisa em respingos de escarro, de vômito, de sangue, e depois leva tudo isso para o ponto de ônibus. Pior, por se tratar dos arredores de um hospital, frequentemente se vê, nesta parada, marcas de sangue, escarro ou vômito no chão.
Mas, francamente, não sei se eu senti mais nojo do cigarro sujo ou do exemplo mal colocado. Afinal, o que não mata, engorda, e o que é do gosto regala a vida. Mas, e estas crianças destas tristes cenas? Que imagens guardarão consigo?

sábado, 2 de julho de 2011

Pé no freio

Mais um acidente de trânsito... Mais uma vez ilesa... Está na hora de repensar meu jeito de dirigir.

No ano de 2003 eu morava em Tubarão, Santa Catarina, cidade às margens da BR101, naquela época ainda não duplicada e altamente mortífera. Morei por dois anos neste lugar e com uma frequência mínima de duas vezes por mês, pegava a estrada para Canoas, cidade gaúcha da minha família. O trânsito na 101 era infernal. Ultrapassagens perigosas, imprudência, via tudo isso constantemente. Por mais de uma vez fui obrigada a sair da pista e ir para o acostamento para evitar alguma tragédia. Mas sobrevivi a dois anos nesta estrada sem ter sofrido nenhum acidente. Talvez pela tensão gerada por ela, por saber dos tantos riscos que ela representava, mantinha-me mais alerta, mais atenta, e era mais prudente do que de costume.
No dia 24 de maio daquele ano, estavam me visitando minha mãe, minha irmã e um amigo, que hoje é meu marido. Resolvemos dar um passeio no Farol de Santa Marta. O dia estava muito frio, mas o Farol é sempre lindo. Lá fomos. Na volta, final de tarde, vinha em alta velocidade na estradinha de chão batido. Num dado momento, olhei no retrovisor e, ao olhar novamente para a frente, estava chegando numa pontezinha de madeira, sem guarda, que ficava na saída de uma curva. Era a ponte do Rio Seco (que é seco apenas no nome), no distrito da Madre. Mal posicionada, a curva era para a esquerda e a ponte apontava para direita. Quando a vi, não houve tempo para nada. Cheguei a frear, mas o carro derrapou na areia grossa e desabou de cima da ponte para dentro do rio. Só tivemos tempo de soltar o cinto de segurança. Minha irmã foi a primeira a saltar do carro, quando ainda estava em queda. Boa nadadora, chegou logo à margem. Meu amigo, sentado no banco do carona, conseguiu abrir sua porta e posicionar-se de forma a ajudar minha mãe a sair. Quando o carro tocou o rio, ela teve a sensação de que o perigo terminara, e ficou parada, sem outra reação. Ele a fez sair e nadar até a margem. Até hoje rimos, porque ela chegou à margem sem molhar os cabelos e com a bolsa pendurada no ombro! E eu? Eu fui a última a sair. Como o carro caiu com o motor para o fundo do rio e levemente inclinado para a esquerda, a pressão da água impedia que eu abrisse a porta. Na pressa, não lembrei de olhar para a porta do carona, que já estava aberta. Abri um pouco a minha janela, e por ela passei. Depois do carro ser içado, vi o tamanho da abertura, e é quase inacreditável que eu tenha conseguido passar por ela. Deve ser o tal instinto de sobrevivência!
Molhados, gelados, aguardamos o socorro, que foi chamado por pessoas que passavam por ali. Uma família muito pobre que morava nas margens do Rio Seco nos emprestou casacos, para aliviar aquele frio todo. Uma senhora que nos ajudou, chamando bombeiros e guincho, perguntou-nos se estávamos todos bem, se não tinha ficado ninguém no carro e, surpreendentemente nos disse “Meu marido morreu assim”. E depois disso sumiu no horizonte. Não a vimos mais, nem para agradecermos toda sua ajuda.
O Palio azul marinho, que minha mãe ganhou da minha avó, novinho, não tinha 3000 km rodados, teve perda total.
Durante meses, ao fechar os olhos para dormir, via toda aquela água batendo no vidro. Foi difícil superar o trauma. Quando assisti ao filme O Mistério da Libélula, que tem uma cena parecida, cheguei a ter uma crise nervosa. Quase desisti de dirigir, mas resolvi seguir em frente ao invés de me deixar abater por este acontecimento.
Este foi um dos mais graves acidentes que eu sofri. Quando pequena, meu avô Leonello estacionou na beira de um barranco e o carro despencou, caindo dentro de um valão. Estávamos em cinco no veículo, eu tinha apenas 4 anos. Noutra feita, fui tirar o carro de um estacionamento e simplesmente o atravessei por cima de uma daquelas malas de concreto. Um negócio inexplicável! Eu vi a tal mala, eu sabia que ela estava ali, mas uma total falta de senso me fez virar a direção e sair por cima dela! Também atropelei um ciclista, cuja bicicleta estava sem freios e que atravessou o sinal vermelho. Por sorte, eu estava em muito baixa velocidade e apenas encostei na bicicleta, derrubando-a. E a minha vítima, um piá de doze ou treze anos, com mais medo dos próprios pais do que dos eventuais ferimentos, não aceitou que eu o levasse ao hospital, pegou sua bicicleta e se mandou. Eu fiquei lá, atônita e apavorada. Há dois anos, um carroceiro entrou comigo em uma grande avenida e acho que o cavalo se atrapalhou e acabou batendo na lateral do meu carro. Teve uma vez em que eu fui dar uma ré, num estacionamento, e enfiei o carro numa árvore.
Apesar dos acidentes, todos apenas com danos materiais (exceto o do ciclista, mas ele fugiu, suponho que estivesse bem!), sempre me considerei boa motorista. Arrojada, corajosa, decidida, enchia a boca pra dizer que eu dirigia “feito homem”, porque sempre tive horror da maneira “mulherzinha” de dirigir, devagar, cheia de cuidados, indecisa, "atrapalhando" todo mundo. O jeito masculino de dirigir combina mais com a impaciência descontrolada que eu carrego comigo. É um jeito machista de pensar? Pode ser. Eu nunca me declarei uma feminista de carteirinha. Achava que para ser boa motorista, tinha que agir no trânsito de um jeito meio masculino.
Semana passada, comprei um carro novo. Viajamos com ele, fomos até Santa Maria, no interior do Estado. Estava evitando usá-lo para ir para o trabalho, mas como estive gripada durante a semana e estava muito frio e chuvoso nesta sexta-feira, resolvi ir de carro. Deixei o marido no seu serviço e segui para o meu. Ao ingressar da Carlos Gomes para a Nilo Peçanha, em Porto Alegre, entrei na frente de um outro automóvel. Tudo certo, tudo em tempo, distância adequada, não fosse um terceiro veículo, que cortou a minha frente, vindo da esquerda para fazer uma conversão à direita, me obrigando a frear bruscamente e provocando a colisão do carro que vinha atrás na lateral do meu carro. Um susto, uma frustração de bater um carro com menos de 900 km rodados, e um golpe no bolso, não mais do que isto.
Pois bem, depois de tudo isso, talvez esteja na hora de deixar a mulherzinha que eu sou dirigir o carro. Certamente ela será mais prudente do que o machão que eu encarno ao sentar diante do volante, vai se envolver em menos acidentes e terá mais chances de sobreviver. Acho que até hoje, não foi minha direção arrojada que salvou minha pele, mas sim um bocado de sorte e proteção divina. Está mais do que na hora de tirar o pé do acelerador e botá-lo no freio, suavemente, enquanto é tempo.